"Aqui no posto
há vários motoristas que fazem rabo-de-galo. Mandam encher com álcool, mas colocam de 20% a 30% de gasolina.
E não é para aumentar a autonomia. É para fazer o motor durar mais, mesmo.” A frase do frentista
João Soares, que trabalha num posto de combustível de grande movimento de São Paulo, revela uma lenda
que cresce a cada dia entre os proprietários de carros flex. Mas será que é verdade que um veículo
bicombustível rodando só com etanol pode ter problemas mais cedo que aquele que só usa gasolina?
Diante
desse cenário, fomos atrás de montadoras, engenheiros mecânicos, distribuidoras de combustível
e mecânicos independentes para saber qual é a dose de mito e realidade que há nessa lenda. Em princípio,
não existe um padrão ou fórmula a ser seguida, mas na maioria das conversas ficou claro que o uso exclusivo
de álcool costuma acarretar problemas específicos que podem reduzir a vida útil do motor.
O principal
efeito negativo do uso prolongado do etanol é o baixo índice de lubricidade que tem esse combustível.
O termo é usado para exemplificar a capacidade lubrificante do combustível. “Pela lei, o álcool
hidratado poderá ter um percentual de até 7% de água em sua composição, o que é
normal”, afirma o engenheiro mecânico Julio Roberto Santos Bicalho, consultor da Petrobras.
Dessa maneira,
algumas das peças vitais ao funcionamento do motor, como válvulas, sedes de válvulas, guias e anéis
de segmento, poderão ter menor vida útil em comparação a um motor que consuma apenas gasolina,
que também possui até 25% de álcool em sua composição, porém isento de água
por ser do tipo anidro. Na prática, essas peças que entram em contato com o combustível trabalharão
com um nível de atrito ligeiramente maior. “Se o motor foi projetado para rodar 300 000 km, pode ser que ele
dure 15% menos”, diz Bicalho. Ou seja, pode durar em torno de 250 000 km.
Aditivo na fórmula
Vale
ressaltar que os componentes do motor também poderão apresentar desgaste ou falta de vedação sob
o uso de gasolina por causa do acúmulo de impurezas sólidas, características da queima desse combustível.
O técnico automotivo e proprietário da oficina Vicam, Amauri Cebrian Gimenes, comenta que, devido à
utilização de álcool, o óleo do motor poderá ficar contaminado com pequenas gotículas
de água, principalmente os que rodam por curtos trajetos, durante a fase de aquecimento. “Para que esse motor
permaneça saudável, é aconselhável que seja escolhido um óleo de última geração
recomendado pelo fabricante, ou até mesmo os específicos para motores flex, que possuem em sua formulação
aditivos que já preveem essa situação e poderão melhorar os índices de lubricidade”,
diz Gimenes.
Foi justamente para combater esse efeito que a Shell lançou este ano sua versão de álcool
aditivado. “A formulação do Etanol Aditivado V-Power foi desenvolvida com a intenção de
eliminar as deficiências lubrificantes perante a gasolina, com um pacote de aditivos que favorecem a limpeza dos componentes
com os quais entra em contato, garantindo maiores índices de lubricidade”, diz o engenheiro-chefe da Shell, Gilberto
Pose.
Segundo a empresa, o consumo também poderá apresentar ligeira melhoria, pois o menor atrito interno
resultará em maior entrega de potência e menor “aspereza” durante as acelerações mais
fortes, que é característico dos motores flex quando estão 100% abastecidos com álcool.
Drinque
batizado
Outro fator que poderá colaborar para a aceleração do desgaste interno dos motores flex
é o abastecimento com álcool batizado. Quando há a adulteração, muitas vezes é feita
a simples adição de água de torneira, rica em minerais e cloro, que depois de queimados poderão
agredir anéis, cilindros, sedes e guias de válvulas, bicos injetores, catalisador, ou até mesmo entupir
bomba de combustível, filtro, entre outros.
É por isso tudo que boa parte dos mecânicos e engenheiros
recomenda a ciclagem do combustível, ou seja, alternar o abastecimento entre etanol e gasolina. A Ford é uma
das que apoiam essa prática. “Os manuais do proprietário da marca não obrigam, porém recomendam
o abastecimento com gasolina a cada 5 000 km ou três meses”, diz o supervisor de serviços técnicos
Reinaldo Nascimbeni. “Devido às condições de uso de alguns proprietários, como a utilização
em percursos curtos, sem que o motor atinja a temperatura normal de trabalho, poderá ocorrer a formação
de pequenos depósitos nas válvulas de admissão, que serão removidos imediatamente com a utilização
da gasolina. A utilização é recomendada como condição preventiva, evitando o acúmulo
do depósito nas válvulas, caso essa condição extrema de uso seja mantida ao longo da vida do veículo.”
Consultadas, Chevrolet, Citroën, Fiat e Honda não fizeram menção à ciclagem do combustível
após determinado período sob uso do álcool, ficando a critério do proprietário do veículo
a livre opção de escolha. Mas alguns engenheiros dizem que as fábricas não gostam de recomendar
oficialmente a ciclagem, pois poderia ser interpretado como uma limitação ou problema do motor flex.
Uma
boa maneira para fazer a ciclagem é abastecer o tanque com gasolina após três de álcool. Mas atenção:
fazer o rabo-de-galo não é tão benéfico como fazer a ciclagem. “Recomendo que se faça
a ciclagem dos tanques. Em conversas com engenheiros da Magneti Marelli e da Bosch, eles explicam que seus testes revelam
que um bico injetor dura menos quando trabalha com o rabo-de-galo que com um dos combustíveis puros”, diz o engenheiro
mecânico Paulo Pedro Bueno Aguiar Jr., proprietário da oficina Engin.
“Recomendo também
que o filtro de combustível seja trocado preventivamente a cada 10 000 km. Tenho recebido vários veículos
com a peça entupida com uma espécie de goma criada pelo álcool, antes mesmo do prazo recomendado pelo
manual. Com a ciclagem, a gasolina irá dissolver essa goma, que também costuma ficar acumulada no tanque, melhorando
a limpeza das vias de alimentação de combustível”, diz Aguiar.
INJEÇÃO
NA ESCOLA
Poucos sabem, mas um veículo flex, logo após ser abastecido, precisa rodar um determinado
tempo e quilometragem para “aprender” qual combustível foi colocado no tanque. Oficialmente, algumas montadoras
afirmam não ser necessário o aprendizado. Na prática, o módulo de controle poderá demorar
a identificar e adotar a melhor estratégia de funcionamento caso o motor seja desligado logo após o abastecimento,
prática comum de quem costuma encher o tanque momentos antes de chegar em casa. Vejamos o exemplo de um veículo
que tinha 100% de álcool no tanque e foi abastecido com 100% de gasolina. Como o álcool tem menor poder calorífico,
o módulo ordena que os bicos pulverizem maior quantidade de combustível, para compensar também a taxa
de compressão menor que a ideal, se comparada à de um motor dedicado apenas ao etanol. No motor flex, a taxa
gira em torno de 10:1 até 12,5:1, que nada mais é que um meio-termo para os dois combustíveis. Logo após
sair do posto com o tanque cheio de gasolina, o módulo reconhece que houve o abastecimento devido à subida do
ponteiro no painel (quando superior a 7 litros). Mesmo assim, ele ainda continuará a trabalhar por um tempo na estratégia
do álcool, com o excesso de gasolina sendo pulverizado na câmara. “O percurso de 10 minutos ou 20 km rodados
é suficiente para que o módulo aprenda qual combustível está sendo injetado e passe a utilizar
a estratégia correta de injeção”, diz o engenheiro Paulo Pedro Bueno Aguiar Jr.
Fonte: Quatro Rodas
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