Para início de conversa, a Receita não é banco e o que arrecada pertence ao povo. Por outro lado,
a maior parte das dívidas fiscais decorre de ser o nosso sistema tributário absolutamente injusto, confiscatório,
confuso, contraditório e contrário aos princípios fundamentais da Constituição.
É
muito fácil apontar o dedo para o devedor de impostos e acusá-lo de todos os nossos males. Todavia, a arrecadação
cresce mesmo nos momentos de crise, permitindo que o funcionalismo público brasileiro seja um dos mais bem pagos do
mundo, gozando de garantias invejáveis, inclusive a aposentadoria precoce que não se vê em nenhum outro
lugar, além de estabilidade.
Queixou-se a autoridade de que teria o Congresso aprovado medidas de interesse dos
contribuintesà revelia da Receita. Ora, estamos num estado democrático de direito e isto aqui, embora nem sempre
pareça, é uma democracia. O artigo 1º parágrafo único da constituição não
se discute: o poder pertence ao povo. Assim, o Congresso não precisa pedir licença à Receita para decidir
qualquer coisa.
Pode parecer à primeira vista que a chamada proliferação de parcelamentos seja um
desvio ou um abuso. O melhor seria que todos os contribuintes pagassem regularmente suas contas e é exatamente isso
mesmo que todos querem. A vida é bem mais simples sem dívidas fiscais. O contribuinte em dia tem acesso mais
simples ao crédito, às licitações, concorrências, etc., o que poderia lhe trazer mais lucros.
No
caso específico dos parcelamentos que agora estão em fase de consolidação, o que temos visto é
uma enorme sucessão de falhas e erros grosseiros praticados pela Receita que, tendo mais de um ano para conferir seus
números, não foi capaz de acertar seus registros.
Há inúmeros casos em que persistem como dívidas
valores que já foram pagos. Se a lojinha da esquina me cobrar uma conta que já paguei, reclamo ao Procon, vou
até à Policia e posso processar o comerciante. Mas a Receita, com todo o aparato tecnológico de que dispõe,
não consegue dar baixa numa dívida no tempo certo, obrigando o contribuinte ou o seu contador a enfrentar caminhos
tenebrosos para tentar consertar os erros que o fisco cometeu.
O lado engraçado da reportagem é quando se
menciona que a autoridade fazendária aponta como modelo a ser seguido o sistema de cobrança de tributos da Austrália.
Trata-se de um país totalmente diferente do nosso, a começar pelo regime político. Uma rápida
consulta a qualquer enciclopédia (pode ser a wikipedia) seria útil para lembrar que se trata de outro tipo de
sociedade, outra cultura, outra economia, enfim, é como comparar o Brasil com a Islândia ou a Suíça.
Nada a ver, cara pálida!
Além de tudo isso deve-se levar em conta que a maioria esmagadora dos débitos
fiscais (inclusive na área estadual e municipal) inclui multas que foram fixadas em total desacordo com a constituição
federal. O artigo 150 inciso IV diz que não se pode cobrar tributo com efeito confiscatório e isso inclui as
multas, sim, como já decidiu o Judiciário várias vezes.
Não faz sentido e é totalmente
desonesto que por não recolher R$ 10 mil alguém possa ter uma multa de R$ 250 mil!!! Essas multas são
lavradas por causa de interpretações maliciosas de leis malfeitas e até mesmo porque fiscais resolveram
prejudicar deliberadamente o contribuinte. A lei que permite um abuso, que viabiliza um iniquidade, que embasa uma injustiça,
não merece ser respeitada, mas deve ser derrubada no Judiciário.
Consta que 60 mil empresas perderam o prazo
em 30/6 para renegociar suas dívidas. Se o tal Refis fosse mesmo um financiamento isso seria ruim para esse pessoal.
Mas o refis pode ser uma armadilha, na medida em que já foi anunciada a possibilidade de que os créditos venham
a ser negociados com bancos. Ou seja: poderia o credor de títulos de dívida ativa , regularmente constituídos
e objetos de confissão expressa, revendê-los com deságio a algum banco e este iria cobrá-los do
contribuinte. Não me parece que a vítima do fisco seja menos vítima quando o carrasco for um banqueiro.
Quando
o contribuinte adere a um parcelamento está fazendo uma confissão de dívida. A afirmação
de que isso é irrevogável ou irretratável não pode prevalecer, ante o que dispõe o artigo
5º inciso XXXV da Constituição. Assim, qualquer contribuinte que tenha aderido a um parcelamento pode pleitear
sua retificação judicial.
Os sistemas de parcelamento não são financiamentos concedidos pelo
governo. São, pura e simplesmente, mecanismos de defesa do próprio poder público, cujo interesse maior
deve ser a sobrevivência das empresas, especialmente das pequenas e médias, que são as que geram mais
empregos e pagam mais impostos.
Estamos numa nova fase da economia nacional, dentro de um contexto internacional que pode
nos ser muito favorável. Não podemos transformar contribuintes em débito em inimigos a eliminar. Mas
também não precisamos que servidores públicos se esqueçam do texto da nossa constituição
e possam colocar-se na posição de nossos patrões.
Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente
do Tribunal de Ética e disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor
Jurídico
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