Imagine uma tesoura microscópica que vai até dentro das células e faz cortes cirúrgicos na
fita dupla do DNA dos seres vivos. Esse corte retira características indesejadas do genoma que, após regeneração
natural da célula, desaparecem completamente.
A técnica conhecida como Crispr-Cas9 representa o maior avanço científico já obtido para devolver
o prazer de comer massas, pães, biscoitos e inúmeras iguarias gastronômicas à base de trigo para
pessoas com doença celíaca, causada pela intolerância às proteínas do glúten.
Estima-se que 1% da população mundial, ou 76 milhões de pessoas, tenha a doença, cujos sintomas
clássicos são diarreia ou prisão de ventre crônica, dor abdominal, inchaço na barriga, danos
à parede do intestino, falta de apetite e, como consequência, anemia, perda de peso e desnutrição.
Na onda do estilo de vida de famosos e celebridades, muitos seguem atualmente dietas com redução ou completa
eliminação do glúten.
Em estudo publicado em setembro pela revista científica Plant Biotechnology Journal , pesquisadores espanhóis
e americanos revelaram que, utilizando o Crispr, conseguiram modificar permanentemente 35 de 45 genes de uma variedade selvagem
de trigo, o que levou a uma queda de 85% na reação imunológica contra o glúten. O desafio agora
é desativar os 10 genes restantes para que a cepa “gluten-free” esteja pronta para testes, mas o fato é
que o experimento já mostrou a viabilidade de produzir pães de trigo com baixo teor de glúten.
A pesquisa começou em 2014 pelo Instituto de Agricultura Sustentável em Córdoba, na Espanha, e se
expandiu de forma colaborativa para a Universidade de Sevilha, também na Espanha, e para a Universidade de Minnesota,
nos Estados Unidos.
Edição genética
“Esse trabalho é realmente um avanço sem precedentes na edição genômica de variedades
de trigo. Não estamos tão longe da eliminação completa da proteína gliadina (parte do glúten
tóxica para quem tem intolerância permanente)”, avalia a bióloga Ângela Saito, do Centro Nacional
de Pesquisa em Energia e Materiais, em Campinas, onde funciona o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio).
Ângela trouxe ao Brasil a técnica Crispr-Cas9 após retornar de um doutorado no Anderson Cancer Center,
em Houston, em 2013. Atualmente ela usa a ferramenta de edição genética em camundongos, testando sua
eficiência no tratamento do autismo, disfunções intelectuais e esclerose múltipla.
“O Crispr é muito versátil. Tem enorme potencial para edição dos genomas, seja do trigo,
do arroz, dos animais ou do ser humano. Num trabalho recente, divulgado em agosto, os americanos conseguiram com o Crispr
corrigir a mutação em um embrião humano que causaria uma cardiopatia”, destaca Ângela, lembrando
que a lei americana permite o uso de embriões humanos apenas na pesquisa de tratamento de doenças complexas.
Alguns cientistas comparam a técnica do Crispr a um corretor ortográfico, que seleciona e substitui as palavras
com erro. Mas Ângela Saito prefere a comparação com a tesoura: “A enzima Cas-9 atua como tesoura
molecular mesmo. Ela corta as duas fitas do DNA numa localização específica do genoma”. Mas como
a tesourinha chega a esse local? “É através de um pedaço de RNA chamado RNA Guia. Ele conduz a
proteína Cas-9 para uma sequência específica do DNA. Ele pareia na sequência de letrinhas do DNA
e a proteína Cas-9 faz o corte. Quando isso acontece, mecanismos de reparo naturais da célula são ativados.
Esses mecanismos podem levar à inativação do gene, que nós chamamos de nocaute. No trigo, é
isso que eles estão fazendo, é o nocaute do gene”, explica Saito.
Conta a favor do Crispr o fato de ser um mecanismo de defesa natural e antigo encontrado nas bactérias, que após
a visita de um vírus, “se armam” para poder reconhecer o invasor e se defender em próximos ataques.
As proteínas associadas à Crispr (Cas9) deslizam pela células como agentes policiais, que identificam,
prendem e cortam material genético do vírus, impedindo sua replicação.
Além de suprimir o gene indesejado, a técnica permite introduzir uma mutação específica.
“Neste caso, é preciso um DNA molde. Mas sempre vão ser utilizados o DNA guia e a Cas-9, para quebra da
fita do DNA”, explica a bióloga.
Chave e fechadura
“O Crispr é uma revolução genética no mundo todo, tanto na área animal como vegetal”,
garante o pesquisador da Embrapa Soja Alexandre Nepomuceno, integrante da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio). Nepomuceno diz que um dos avanços mais recentes foi obtido por chineses, que conseguiram, pela modificação
genética, criar suínos resistentes a uma doença respiratória causada por vírus. “A
célula é a fechadura e o vírus é a chave. O Crispr modifica um pouco a fechadura e a chave, ou
seja, o vírus, não consegue entrar na célula”, compara o pesquisador.
Na soja, uma das pesquisas com Crispr está voltada para a inativação de proteínas antinutricionais,
como as proteínas inibidoras de tripsina, que dificultam a digestão e provocam gases. “Não estamos
falando de transgenia. É simplesmente uma mutação no DNA que poderia ocorrer naturalmente. Existem variedades
que têm esta característica. O que tentamos fazer é introduzir essa característica em variedades
altamente produtivas de soja e de milho. O que levaria anos, o Crispr pode fazer rapidamente”, assegura Nepomucemo.
Na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, o Crispr é usado na busca de variedades
de soja que produzam óleo com altos índices de ácido oleico, como o azeite de oliva. Além de mais
saudável para alimentação humana, o óleo com mais ácido oleico tem propriedades emolientes
que interessam também às indústrias de cosméticos – para produção de cremes,
bronzeadores e protetores solares – e de biocombustíveis.
Nas pesquisas com milho, utilizando o Crispr a multinacional Pioneer conseguiu desligar o gene responsável pela
molécula amilose e produzir uma variedade com 100% de amilopectina, um carboidrato que fornece energia de fácil
digestão e rápida disponibilidade para os músculos. Neste caso, os pesquisadores desligaram um gene que
está na rota de produção da amilose. “Com esse gene desligado, o organismo direciona todos os nutrientes
para a outra rota metabólica”, explica Nepomucemo.
De volta ao glúten, estão sendo feitos ensaios clínicos com o trigo “editado” em pessoas
que têm a doença celíaca no México e na Espanha. “Ainda serão necessários muitos
testes antes que essa linhagem seja liberada para plantio comercial”, avalia Airton Vialta, biólogo e doutor
em genética de microorganismos do Instituto de Tecnologia de Alimentos de São Paulo. “O glúten
é responsável pelas principais características sensoriais na panificação. Por isso, sua
eliminação ou substituição nos produtos é um grande desafio tecnológico para a indústria”,
explica Vialta.
O fato é que o Crispr obtém resultados muito mais rapidamente do que os métodos antigos de pesquisa
genética. “No médio prazo, há expectativa de avanços no tratamento da doença celíaca.
Ferramentas de edição genética [que edita o DNA] têm potencial para desenvolver novas alternativas
de produtos a essa população”, prevê Flavio Finardi, professor do Departamento de Alimentos e Nutrição
Experimental da USP.
O termo Crispr é um acrônimo para Grupos de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente
Espaçadas (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeat). Poderia muito bem vir do inglês Crispy
- crocante - como um bom pãozinho francês. Infelizmente, cabe lembrar que boa parte da consistência da
massa da farinha de trigo se deve ao glúten. Quem sabe a pesquisa genética não dá um jeito nisso
também?
Informações: Gazeta do Povo
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