Brasil como paraíso das águas é um mito
Para assessor do Ministério das Cidades, algumas regiões brasileiras
terão, em pouco tempo, uma situação crítica em disponibilidade hídrica
"A idéia de que o Brasil é o paraíso das águas é um mito que prejudica mais
que ajuda". A afirmação é do cientista político Valdemar de Araújo Filho, assessor da SNSA (Secretaria Nacional de Saneamento
Ambiental), ligada ao Ministério das Cidades. Ele é o debatedor desta semana do Fórum sobre o Relatório de Desenvolvimento
Humano, do PNUD. Araújo Filho discutirá com os internautas as medidas que devem ser tomadas pelo país para assegurar que o
Brasil cumpra a meta de saneamento prevista nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: reduzir pela metade, entre 1990 e
Araújo Filho afirma que um dos desafios para avançar no atendimento de água
e esgoto no Brasil o mito de que o país tem água
Em razão disso, defende, as políticas de manutenção e proteção dos mananciais
devem ser prioridade dos governos. "[Isso inclui] além da definição de áreas de preservação, o princípio de que não se deve
implantar rede coletora [de esgotos] sem estações de tratamento", argumenta.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
O Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 aponta que, mantida
a tendência atual, o Brasil provavelmente não alcançará o indicador relativo ao saneamento nos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio. Em 14 anos (de
Valdemar Ferreira de Araújo Filho - Deve ser ressaltado que os dados do relatório revelam a dinâmica da década de 90 e só chegam
até 2004. Nesse sentido, as tendências identificadas pelo relatório estão sendo revertidas pelos investimentos realizados
pelo atual governo federal, que assumiu um outro padrão de financiamento em relação aos praticados na década de 90. Entre
2003 e
Os resultados desses investimentos já começam a ser capturados pela PNAD [Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, que usa uma metodologia diferente da ONU]. No que se refere ao esgotamento sanitário,
entre 2002 e
Quais são os principais desafios do país para que isso aconteça?
Araújo Filho - O governo federal já vem assumindo várias medidas necessárias ao incremento da cobertura dos serviços de esgotamento.
Podemos citar várias iniciativas que integram a estratégia de busca de melhoria nos padrões de atendimento dos serviços de
saneamento. Primeiro, foi a mudança no padrão de investimentos praticado até 2002. Em segundo lugar, o direcionamento da maior
parte dos recursos do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço] para a área de esgotamento sanitário, visto que os operadores
preferem investir em abastecimento de água. Terceiro, o apoio à criação de consórcios regionais envolvendo conjuntos de municípios
de uma mesma realidade socioeconômica e ambiental, de forma que os municípios possam criar sinergias e economias de escalas
em prol da melhoria da qualidade dos serviços de saneamento básico. Quarto, o apoio técnico e institucional que o governo
federal vem prestando aos operadores para o incremento da eficiência operacional e administrativa dos serviços. Finalmente,
as regras relativas ao processo de controle social contempladas no marco regulatório do setor de saneamento, que se encontra
em fase final de tramitação no Congresso Nacional, irão propiciar um grande estímulo para que os operadores invistam mais
recursos em esgotamento sanitário. Por fim, também é necessário que se estabeleça um pacto entre a sociedade civil, titulares
dos serviços, governos e operadores, no sentido de que os serviços de esgotamento sanitário se tornem uma prioridade permanente
de todos os governos, em todas os níveis governamentais.
O relatório do PNUD indica, por outro lado, que o Brasil está
muito perto de atingir as metas de acesso à água. Por que existe essa disparidade entre o atendimento de água e de esgoto?
Araújo Filho - Há três fatores básicos: o pacto federativo, o incentivo econômico, e a cultura política. Os titulares dos serviços
de saneamento são os municípios, embora a maior parte deles (mais de 3.700) seja servido por concessionárias estaduais. Tanto
estas quanto os operadores municipais não dispõem de um forte estímulo para investir em esgotamento, um serviço mais oneroso
na sua implantação e menos rentável na sua operação: parte dos custos dos serviços de implantação e manutenção de esgotamento
são cobertos pela lucratividade gerada pelos serviços de abastecimento de água. A União tem procurado estimular investimentos
em esgotamento, direcionando a maior parte dos recursos do FGTS para essa área. Mas ela não pode intervir diretamente na política
municipal de saneamento ou dos operadores que assumiram a concessão municipal. Além desses fatores, por uma questão de tradição
cultural, e também por fatores relativos ao grau de informação social acerca dos problemas socioambientais provocados pela
ausência de serviços de esgotamento, esses serviços geram menos dividendos e visibilidade política que os serviços de abastecimento
de água. Assim, a União pode estimular uma mudança no quadro e vem tentando cumprir o seu papel, mas ela não pode forçar os
demais entes federativos a investir nesses serviços. Essa mudança também depende de transformações na cultura política compartilhada
pelos dirigentes públicos estaduais e municipais, processo que de fato já vem ocorrendo.
Se uma porcentagem significativa da população tem água, mas não
tem esgoto, para onde está indo a água que elas consomem?
Araújo Filho - É óbvio, embora trágico, que grande parte dela volta, de forma degradada, para o entorno de onde foi retirada.
Se há ausência de rede coletora ou de fossa séptica, as águas servidas jogadas nas valas e ruas se infiltram e contaminam
os mananciais subterrâneos. Quando há valas a céu aberto que são orientadas para rios, lagoas e córregos próximos, essas águas
residuárias irão contaminar os recursos hídricos do entorno próximo. Mas, mesmo quando há rede coletora, mas não há estações
de tratamento e a rede tem um rio ou lagoa como destino final, as conseqüências para o meio ambiente podem ser até mais graves.
Pois o que era poluição difusa, espalhada por uma área de solo que poderia decantar parcialmente os poluentes, torna-se um
foco de poluição concentrada, comprometendo ou mesmo tornando inutilizável a água do trecho de um rio que recebe esses efluentes.
Esse quadro se torna mais grave em rios com baixa vazão, onde o poder de diluição dos poluentes é bastante reduzido. Esse
é o exemplo hoje de grande parte do rio Piracicaba (SP) e de outros rios com baixa vazão média frente ao volume das descargas
dos poluentes. Os esgotos domésticos são as maiores fontes de poluição concentrada dos recursos hídricos do país, e, se esse
quadro não for revertido, grande parte dos mananciais superficiais e dos aqüíferos e lençóis subterrâneos estarão comprometidos
em poucos anos.
E quais os efeitos para a saúde?
Araújo Filho - Em relação à saúde, as conseqüências são bem conhecidas: doenças como cólera, diarréia infantil, verminoses e
tifo são causadas principalmente pela ausência de saneamento básico. Nos últimos anos, a mortalidade infantil tem se reduzido,
já como expressão também da melhoria das condições gerais de saneamento básico. A taxa de mortalidade infantil neonatal declinou
entre 2002 e 2004, com uma queda no risco do óbito infantil de 7,4%. Os óbitos infantis caíram 9,9% em dois anos. O componente
pós-neonatal (entre 28 dias e um ano de idade) da mortalidade infantil, e que se relaciona intimamente com as condições sanitárias,
foi o que mais contribuiu para a queda da taxa, com 8,8% de redução entre 2002 e
O relatório do PNUD destaca que o Brasil é um dos países que tem
mais água do que pode consumir, mas que ainda sim não conseguiu superar o desabastecimento nas regiões secas e entre a população
de baixa renda. Por que isso acontece?
Araújo Filho - Há vários fatores para isso. Em algumas regiões, como o Norte e o Nordeste, os operadores estaduais e os governos
municipais dispõem de menor capacidade técnica e financeira para operar e investir em serviços de saneamento. Mas, muitas
vezes, o saneamento não é de fato uma prioridade política em muitos dos pequenos municípios do país. Gostaria de lembrar que
o déficit de esgotamento sanitário por faixa populacional se concentra nos municípios com população abaixo de 30 mil habitantes,
independentemente da região do Brasil. Nesses, a média de cobertura domiciliar por rede coletora em 2000 era de 29,11%. A
solução adotada é a agregação da fossa séptica, quando a cobertura média sobe para 42,60%, considerando-se os valores daquele
ano (Censo de 2000 do IBGE).
Um outro fator é que em algumas regiões, como o Nordeste, de fato não há mananciais
suficientes e a captação muitas vezes se situa muito longe dos municípios beneficiários. Assim, o abastecimento ocorre de
forma intermitente e onerando os serviços, reduzindo a qualidade do atendimento. Nesses locais, principalmente nos pequenos
municípios mais pobres, o abastecimento só pode ser economicamente viável através do subsídio cruzado praticado pelas operadoras.
Finalmente, há um fator muito importante que é o mito disseminado acerca da
disponibilidade de água. Na realidade, a idéia de que o Brasil é o paraíso das águas é um mito que prejudica mais que ajuda.
Se observarmos a disponibilidade hídrica nas várias regiões hidrográficas do país, vamos perceber que a realidade nos períodos
de seca é outra. Se utilizarmos o indicador ?proporção da vazão de estiagem em relação à vazão média? dos rios de algumas
regiões hidrográficas, que é a água de fato de que se pode dispor com segurança durante todo o ano, veremos que na região
hidrográfica do Uruguai essa proporção é de 9,49%; na Atlântico Sul, de 14,95%; na Atlântico Leste, de 16, 96%; na Atlântico
Nordeste Oriental, de 4,11%; e na Atlântico Nordeste Ocidental, de 12,23%. Ou seja, a disponibilidade hídrica do país varia
no espaço e no tempo, mostrando um mapa de distribuição dos recursos hídricos extremamente desigual. Das 12 regiões hidrográficas
nacionais, apenas três superam uma vazão de estiagem em relação à vazão média acima de 38% (Plano Nacional de Recursos Hídricos).
Com esse perfil de distribuição dos recursos hídricos, uma das políticas prioritárias deve ser a proteção e a manutenção dos
mananciais, incluindo, além da definição de áreas de preservação, o princípio de que não se deve implantar rede coletora sem
estações de tratamento. A realidade é que em muito pouco tempo algumas regiões do Brasil estarão enquadradas como regiões
críticas em termos de disponibilidade hídrica, categoria em que o semi-árido da região Nordeste já se enquadra há muito tempo.
Como isso pode ser revertido?
Araújo Filho - Com a definição de um novo perfil federativo na política de saneamento básico, de forma que haja compromisso por
parte dos entes locais e regionais com os investimentos em sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, como
vem estimulando a SNSA; com a consolidação de políticas ambientais e de recursos hídricos efetivas e integradas com a política
de saneamento básico, iniciativa que os órgãos federais do setor já vêm assumindo; com a definição de circunscrições territoriais
unificadas de planejamento para as políticas de recursos hídricos e de saneamento básico, de forma que se leve em consideração
o recorte das bacias hidrográficas e a realidade socioeconômica das populações atendidas; com o incremento permanente dos
investimentos em saneamento, inclusive vinculando parcelas mínimas dos orçamentos da União, Estados e municípios aos investimentos
em saneamento básico; e a implantação de formas de controle social sobre as políticas municipais e estaduais de saneamento
básico.
Constitucionalizar o direito ao saneamento seria uma alternativa
para impulsionar a universalização do acesso à água e ao esgoto no Brasil?
Araújo Filho - Trata-se de uma idéia a se debater. Os usos da água e a disponibilidade de serviços de esgotamento incidem diretamente
sobre as possibilidades de vida das pessoas. É importante que o saneamento tenha o mesmo tratamento que outras políticas,
como as de saúde e educação. Agora, o problema da constitucionalização deve ser discutido dentro do contexto das suas implicações
para a gestão da política de saneamento. O importante é que sejam assegurados recursos permanentes e em patamares satisfatórios,
para que a universalização seja uma meta factível nos próximos 20 anos, como proposto pela SNSA.
O PNUD sugere no relatório a criação de um ministério dedicado
exclusivamente à questão do saneamento. Isso garantiria uma maior atribuição de recursos e ajudaria a diminuir a fragmentação
política no setor. O sr. acha que isso seria viável no Brasil? Solucionaria o problema?
Araújo Filho - Pessoalmente considero essa alternativa inadequada, pois acho que isso agravaria a fragmentação da política. O
Ministério das Cidades vem cumprindo satisfatoriamente suas funções, apesar do pouco tempo de sua criação, em
O sr. avalia que o Brasil investe bem em saneamento?
Araújo Filho - Historicamente, os padrões de investimentos em saneamento sempre foram insatisfatórios. E a prova é o déficit acumulado
de cerca de 9,5 milhões de domicílios sem rede de abastecimento e 16 milhões sem rede coletora ou fossa séptica, grande parte
na área rural. Entre 1995 e
Fonte: Jornal do Meio
Ambiente
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