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O missionário da palmilha

17 de setembro de 2011

Artesão dedica a vida a fazer sapatos e próteses para aliviar o martírio de hansenianos internados pela força da lei

Julio Cruz Neto, de O Estado de S.Paulo

O ruído constante e chato das máquinas de lixar se mistura ao traço meticuloso de mãos que riscam, contornam, medem, afiam, cortam e colam em mesas grandes dispostas no meio do cômodo. Não fosse pela velha máquina de costura preta e pelas prateleiras abarrotadas de próteses e moldes, daria para confundir o ambiente com uma sala de aula de educação artística.

Quem dá expediente ali é um artesão de quase 54 anos que frequentou poucas salas de aula quando pequeno, mas vive se aprimorando. Suas matérias-primas são couro, borracha, resina, aço, contraforte. Sua última obra é um sapato para um cliente que não tem os pés. Do seu trabalho depende o ir e vir de muitas pessoas para as quais se locomover pode ser um martírio. E uma topada numa pedra ou num objeto pontiagudo, uma amputação.

"Tenho orgulho do que faço", diz Edílson Honorato de Almeida, o sapateiro do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, mais conhecido como Santo Ângelo, primeiro asilo-colônia para hansenianos do País. Situado em Mogi das Cruzes (SP) e fundado em 1928, ele continua em funcionamento.

Os hansenianos, antes chamados de leprosos, costumam ter falta de sensibilidade na pele e degeneração nas extremidades. São sequelas que resistem ao tempo, apesar de a enfermidade, transmitida pelo contato direto com doentes sem tratamento, ter cura desde os anos 70. Por esse motivo os hansenianos precisam de calçados sob medida, que sejam confortáveis e reforçados, com palmilhas especiais.

Essa é a missão do funcionário público Edílson em sua jornada diária das 7h às 13h, que ele cumpre há duas décadas, ganhando um salário líquido que não chega a R$ 1.000. Em compensação, Edílson não paga por serviços básicos como água e luz - benefício de quem vive nessas colônias -, e em breve contará com outro. Promulgada em 18 de setembro de 2007, há exatos quatro anos, a lei 11.520 determina que pessoas com hanseníase internadas compulsoriamente até o ano de 1986 têm direito à pensão vitalícia de R$ 750 mensais, reajustada anualmente.

É o preço de um pé de scarpin Salvatore Ferragamo. Mas, para quem não liga para esses luxos e, principalmente, entende do riscado, é um dinheiro que pode ser mais bem aproveitado. "Ontem mesmo comprei um sapato por R$ 99. Sei olhar e comprar um que seja bom e não muito caro."

Edílson calça 39, mas costuma comprar um número maior, ou até dois, para poder acomodar uma palmilha especial de 2 cm, feita por ele mesmo, por causa da falta de sensibilidade nas solas. Também tem um calo no pé direito, consequência de um ferimento, que o faz visitar a podóloga a cada dois meses, além de calombos nos mindinhos das mãos. É o discreto legado que a hanseníase deixou em seu corpo.

Outros moradores do Santo Ângelo ficaram com sequelas piores, como o cliente que, abaixo da perna, tem praticamente apenas o calcanhar. O formato do seu calçado é padrão, mas ele leva um enchimento para aliviar a pressão sobre o tornozelo, ajudando a suprir a tarefa que seria dos dedos. O contraforte, que envolve o calcanhar, também é reforçado, para evitar torções e topadas. "Hanseniano é louco para machucar o tornozelo porque perde a sensibilidade. E isso não se recupera", diz.

A borracha das palmilhas é importada da Alemanha porque a germânica dura o dobro da nacional e acomoda melhor, devido à maciez. Ainda assim, dependendo do peso da pessoa, sua validade não passa de dois meses, pois deficientes depositam muita carga numa área do pé. Como é caro (R$ 240 uma placa de 1 m x 0,60 m), o material importado é usado apenas para os pés mais comprometidos. Clientes menos sequelados, como o próprio Edílson, optam pela borracha nacional. "Tenho consciência."

O negócio dele é fazer palmilhas e próteses. Sapatos, só para as pessoas que não têm dinheiro para comprar os próprios. Mas ele reconhece que não são seu forte. Não ficam bonitos. Por isso prefere usar os comprados prontos. "Não ligo para roupa, mas com sapato tenho certa vaidade." Se houvesse no dicionário esse termo, poderíamos chamá-lo de palmilheiro. Palmilheiro vaidoso. Vaidoso e são. Adjetivos que, 45 anos atrás, não pareciam que um dia lhe caberiam.

"Eu tinha 9 anos e estava na escola quando o filho da diretora, criança, disse: 'Minha mãe vai te expulsar porque você tem umas manchas muito feias no rosto'." Edílson baixou a cabeça, foi para casa - em Rio Branco, capital do Acre, onde nasceu - e contou para a irmã. A mãe estava internada, com a mesma doença. Foi levado ao dr. Efraim, que se pelava de medo da doença. Quando Edílson entrou no consultório, uma sala bem grande, o médico esticou o braço: "Não chegue perto de mim, fique aí". Dr. Efraim mandou a enfermeira colocar água quente em um tubo de ensaio e encostar o vidro em várias partes do corpo do menino. Ao detectar que ele não tinha sensibilidade, decretou: "Você vai se internar".

Edílson chegou à colônia e encontrou três colegas de infância que, supostamente, estavam viajando. "Na época, nem os vizinhos podiam saber do nosso destino, porque ficavam com medo da família." O menino estava magro e anêmico - segundo ele, culpa do tal médico da cidade, que o mandava engolir três comprimidos por dia. Na colônia, o especialista falou para tomar só vitamina durante um mês e depois meio comprimido (do mesmo de antes) por dia. "Fiquei forte, brincava, jogava bola."

Vivia numa espécie de orfanato chamado Casa das Crianças, porque a mãe falecera antes de ele chegar - dos sete filhos dela, três contraíram hanseníase. Cresceu, fez supletivo e aprontou das suas, como todo adolescente. Com 15 anos, fugia para ir ao cinema. Andava uns 5 quilômetros no mato carregando bicicleta nas costas e depois pedalava. "Quando chovia, a gente levava roupa no saco plástico, tomava banho no banheiro público, passava perfume. Arrumava até namorada." Assim foi até que teve alta e deu uma banana para os comentários de que só sairia dali para o Tucumã, o cemitério local.

Foi viver em Manaus, a convite de um amigo do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), e ali começou a militar. Mas eles precisavam trabalhar e isso os fez cruzar o País rumo a Bauru, no interior de São Paulo, onde havia um curso de prótese e órtese especializado em hanseníase. Pegaram dinheiro emprestado, fizeram uma farofa com dois frangos que acomodaram em latas grandes de Neston para não gastar dinheiro na estrada e entraram no ônibus. Dois anos depois, estavam formados e prestando concurso municipal para sapateiro em São Bernardo, onde havia uma sede do movimento. "Fui esperto. Estudava até fechar a biblioteca", conta Edílson, que passou em primeiro lugar e recebeu a proposta de trabalhar no Santo Ângelo, então um lugar promissor para seu ofício. "Estou aqui há 23 anos, parece?"

Edílson se lembra com nitidez dos primos que, por temor de ficar doentes, faziam questão de caminhar à frente para não pisar em seu rastro. Mas tem dificuldade para guardar datas. O Santo Ângelo é de fato um lugar onde o tempo passa sem que se dê por partido. O cinema virou ruína. A população, antes na casa dos milhares, diminui ano a ano: restam pouco mais de cem. Na lanchonete circulam enfermeiras e clientes de muletas e cadeiras de rodas. Nas ruas, o que mais se vê são ambulâncias.

A sapataria foge à regra e se apresenta produtiva. No entanto, como em toda repartição pública, tem lá suas limitações. Edílson conta que os moldes de gesso usados para fazer calçados sob medida chegam a ficar dez dias secando ao sol na falta da resina que agiliza o processo. Mas, de maneira geral, as condições de trabalho são satisfatórias: "Tenho sorte, porque os chefes que passaram aqui nunca deixaram faltar material".

Edílson nunca deixou de prover a família - vive com um casal de filhos pequenos, a mulher e o enteado - e agora aguarda a pensão que ainda não recebeu, já que os idosos têm prioridade. A sua deve sair em outubro, uma bolada acumulada de quase R$ 50 mil, com a qual pretende pagar a faculdade do enteado e comprar um carro melhor.

Falando em carro, o acreano dirige para tudo que é canto. Seu cliente sem os pés, idem. "Ele dirige até melhor que eu", reconhece, dando o crédito para o piloto e não para a palmilha. "A força está no joelho. As pessoas se acostumam a fazer força com a ponta do pé, mas não é necessário."

Falando em sorte, pode até ter a sua dose na vida. Mas entende que fez por merecer porque seguiu à risca a lição do pai: "A sorte nunca aparece na casa de quem tem medo".

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