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Publicado em 02/02/2015
Considerando a polêmica sobre uma “Campanha pela Erradicação da Cinomose”, comunicada ao CRMV-PR em 18 de dezembro, para vacinação gratuita de 200 animais no dia 20 de dezembro pela Instituição Animais Sem Teto (Voluntários na campanha), o Professor Doutor Luiz Felipe Caron (UFPR), integrante do grupo de trabalho "Incremento na Sanidade Animal" da Articulação da Rota Estratégica de Biotecnologia Animal dos Observatórios Sesi/Senai/IEL, esclareceu dúvidas sobre o assunto ao público, a pedido do CRMV-PR:
Comentários a respeito de um “projeto de erradicação da cinomose canina”
Toda intenção que objetive melhorar a saúde dos animais domésticos e/ou selvagens, incrementando sua qualidade de vida ou sua produtividade, quando estes fatores são pertinentes, merece atenção. No entanto o primeiro passo é se isentar de qualquer conotação pessoal ou política e valorizar os aspectos técnicos científicos envolvidos no objeto. Avaliando os poucos aspectos apresentados no contexto deste projeto de erradicação da cinomose canina, é importante salientar alguns pontos.
O interesse de se erradicar algumas enfermidades sempre esteve associado à magnitude destas, com as conseqüências sociais ou econômicas envolvidas. A cinomose, doença causada por um vírus da família Paramyxoviridae, é objeto de controle na prática clínica veterinária. O controle da mesma e a atenção as suas manifestações faz parte do dia-dia do profissional veterinário e dos proprietários, e está baseada no manejo ambiental e na vacinação. A partir daqui é importante que todos os envolvidos entendam o que significam programas de vacinação e conceitos epidemiológicos. A vacina como ferramenta de controle de enfermidades, define-se exatamente como isto, uma ferramenta. Se bem utilizada traz benefícios, mas se mal ou ingenuamente utilizada, não só não traz benefícios como implica em prejuízos.
Quando se intenciona erradicar uma enfermidade, antes de tudo se deve delimitar do que estamos falando: erradicar de uma espécie, de um local geográfico, etc. Neste ponto alguns fatores favorecem o desenvolvimento de vacinas eficazes bem como o propósito da erradicação.
1- Quanto ao agente infeccioso, apresentam-se um ou poucos sorotipos importantes e pouca mutação do tipo “drift” ou “shift”, assim como epítopos importantes sendo facilmente identificáveis, podemos ter um facilitador e este é o caso da cinomose, PONTO POSITIVO. Rota de imunização possível que gere imunidade duradoura, tanto humoral e celular, é viável e rota de imunização mucosa possível, também facilita o processo de erradicação. Neste último ponto o controle da cinomose não viabiliza a vacinação mucosa, com as ferramentas disponíveis, e aqui um grande prejuízo, quando, apesar de criarmos proteção duradoura nos animais, a “vacinação” do ambiente é dificultada. Isto significaria que o processo de vacinação pudesse gerar imunidade mucosa (IgA) e que pudéssemos substituir o vírus selvagem pelo vacinal, este um passo do controle, mas ainda muito longe da erradicação (veja-se os exemplos de poliomielite humana, doença de newcastle, bronquite das galinhas entre outros) Nestas condições todos os exemplos de sucesso com erradicação estão associados com abate sanitário, ou eutanásia em massa. E não cremos ser esta a intenção de um programa inteligente para erradicação da cinomose, PONTO NEGATIVO.
2- Quanto a enfermidade, a infecção natural produz imunidade protetiva e duradoura. Esta é uma grande vantagem da cinomose, mas desequilibrada pela letalidade da doença, ou seja, uma grande parte dos animais enfermos morre, o que reforça ainda mais programas de vacinação bem executados e neste ponto, a eficácia de vacinas contra cinomose nos deu o exemplo de avanços tecnológicos, com vacinas HTLP e vacinas recombinantes. Desta forma pode-se desviar as enormes falhas vacinais associadas a presença de anticorpos maternos em animais vacinados e a segurança de vacinas com alto título. Neste sentido o melhor controle da doença nos últimos 30 anos se justifica pela atenção veterinária competente nas clínicas e consultórios, quando programas ambulatoriais ou campanhas poderiam ser prejudicados. Isto é muito claro quando se comparam doenças de alta morbidade como a cinomose e de baixa como a raiva, mas ambas com alta letalidade. Desde a década de 70 com a execução das campanhas de vacinação contra a raiva canina no Brasil, a cobertura de 70-80% da população permitiu o controle da raiva, mas nem assim sua erradicação. Enfermidades como a cinomose necessitariam, apenas neste ponto uma cobertura maior, dada sua morbidade, e abaixo poderemos concluir com os exemplos atuais a inefetividade deste processo.
3- Finalmente quanto a erradicação, precisamos responder: qual a intenção de um programa, e estamos falando de um programa articulado com vários setores e momentos, não de um projeto de vacinação. O objetivo é erradicar a doença e assim não termos mais a possibilidade de incidência da cinomose? INIVIÁVEL. Quando não se pode garantir que a doença atinge apenas uma espécie e que não há a possibilidade de reservatórios, nem domésticos nem selvagens, a vacinação simplesmente não tem impacto para este alcance. Vejamos algumas Paramyxoviroses para fundamentar. O Brasil é um grande exemplo de controle da doença de newcastle, com patogenia similar a da cinomose. Estamos muito confortáveis no país, com programas intensos que vacinaram 100% (acredite, 100%) da população comercial, via mucosa e injetável, e conseguimos no sul do país não vacinar nossos frangos há quase 30 anos, mas ainda vacinando outras classes de aves, pois obviamente não se erradica uma doença desta classe apenas com vacina e abate de animais enfermos, animais contato e animais no raio dos focos (algo obrigatório neste caso). Novamente não creio que se proponha isto para a erradicação da cinomose. A peste bovina, única enfermidade animal erradicada, também um paramyxovirus, alvo de intensa vacinação, abate de animais e barreiras sanitárias intensas, assim como a newcastle. Não criaremos barreiras sanitárias para cinomose, obviamente, ou seja, erradicar é ingenuidade ou... Podemos tratar do sarampo, que tem inclusive imunidade cruzada com cinomose. Neste caso temos muitos paralelos culturais certo? Não sacrificamos os cães no raio de foco, temos vacinas eficazes disponíveis e atenção médica ou veterinária quando é o caso. Para o sarampo, vacinação obrigatória de 100% das crianças, vacinação de adultos em focos e vigilância constante. Isto é um programa articulado. Quem é o responsável pela vigilância da circulação viral e caracterização dos casos? Não temos para cinomose. A não ser que um bom programa vise isto em longo prazo. Assim mesmo obviamente não erradicamos o sarampo, mas estamos sob um controle eficiente.
Assim um programa como o que se apresenta, poderia ser chamado de PROJETO DE VACINAÇÃO GRATUITA PARA A CINOMOSE, mas jamais programa de erradicação. Porque não se trata de um programa, a consulta a OIE pode dar boas orientações resumidas para quem não é da área. E principalmente porque não há como erradicar com este modelo, haja vista poucos argumentos aqui apresentados, apenas uma pequena parte do que é a EPIDEMIOLOGIA e a VACINOLOGIA VETERINÁRIA, conseqüências da dedicação e da ética de profissionais responsáveis, aqueles que tentamos formar na Universidade e principalmente encontrar na nossa atividade diária.
Luiz Felipe Caron possui graduação em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Paraná (1994) e mestrado em Ciências Veterinárias pela Universidade Federal do Paraná (2001). Doutorado em Biotecnologia pela Universidade Federal do Paraná (2010). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de Medicina Veterinária, com ênfase em Patologia Animal, atuando principalmente nos seguintes temas: influenza, vacinologia, virologia e imunologia.
Fonte: CRMV-PR.
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