Publicado em 23/06/2014
Fonte: Marcelo Cabral, para Época Negócios
É comum que operários sejam treinados antes de fábricas novas começarem a rodar. A BMW, no entanto, quer que seus funcionários saibam a pressão certa que devem colocar em cada parafuso, antes mesmo de abrir as portas, em outubro. Para isso, a empresa construiu um simulador que permite a recriação de todos os processos de montagem. É o jeito alemão de trabalhar. Não por acaso, a BMW escolheu uma das regiões mais ligadas à cultura germânica do país para instalar sua fábrica. A pequena Araquari, no interior de Santa Catarina, será a sede da primeira linha de montagem da BMW na América Latina. “Ter um local culturalmente ligado à Alemanha é importante”, diz Arturo Piñeiro, um brasileiro que diz “evolucionou” em vez de evoluiu e “compartilhação” no lugar de compartilhamento. Confusão gramatical causada por 25 anos sem pôr os pés na terra natal e por duas décadas de BMW, trabalhando em países como Estados Unidos, Espanha e Argentina.
Piñeiro deixou o Brasil quando a moeda ainda era o Cruzado, a inflação batia em 1000% ao ano e havia apenas quatro montadoras instaladas aqui. “O país estava quebrado. Hoje é a sétima economia do mundo, o quarto maior mercado de veículos, dono de uma classe emergente de 120 milhões de pessoas e vivendo uma situação de pleno emprego. Foi esse potencial que motivou a BMW a investir aqui”, diz ele. Nesta entrevista, o executivo garante que o programa Inovar-Auto (o novo regime automotivo que impõe cotas para as montadoras que não fabricam no Brasil) não teve influência na decisão, diz como pretende encarar a chegada de concorrentes de peso no segmento premium (Audi e Mercedes também vão inaugurar fábricas por aqui) e conta como a operação local pode ajudar a criar modelos mais adequados a países em desenvolvimento. “A área de blindagens é quase uma exigência dentro do mercado brasileiro – cerca de 30% a 40% dos carros do mercado premium já usam esse equipamento. Podemos fazer, por exemplo, um projeto de blindagem aqui para ser usado no resto do mundo.”
Por que a BMW decidiu abrir uma fábrica no Brasil? Olhamos muito o potencial do Brasil a longo prazo. Mesmo com alguma agitação no cenário econômico, o país segue sendo a sétima economia do mundo, o quarto maior mercado mundial de veículos, dono de reservas de mais de US$ 350 bilhões, uma classe emergente de 120 milhões de pessoas e vivendo uma situação de pleno emprego. Todos são fatores que devem permanecer a longo prazo. Veja, quando saí do Brasil, há 25 anos, o país estava quebrado e devia uma fortuna para o FMI. Quando voltei, não só havíamos quitado essa dívida como nos tornamos credores. Tudo isso junto dá uma segurança muito grande lá fora para investimentos pesados, como a construção de uma fábrica.
Essa agitação econômica não piora as perspectivas do mercado? Há um exagero no pessimismo de hoje, assim como acho que estávamos excessivamente otimistas há alguns anos. Veja o câmbio, por exemplo. A desvalorização a que temos assistido se deve muito mais à ação de especuladores contra as moedas dos emergentes do que a qualquer problema em nossa economia. A inflação está num patamar absolutamente controlável. Precisamos ver isso tudo com mais frieza e mais perspectiva. O que existe é uma crise de confiança. Se toda hora ficarmos falando que “isso está ruim, isso está ruim”, criaremos uma desconfiança que não é necessária. O grande problema que ainda vejo é que o talento está sendo rifado entre as empresas, porque a qualidade da capacitação e da mão de obra piorou. Com o pleno emprego, as pessoas já não têm necessidade de estar se atualizando para achar uma vaga. As empresas pagam mais por um talento normal.
Audi e Mercedes também anunciaram fábricas novas no Brasil. Como será reproduzir a concorrência do mercado alemão no Brasil? Você tem de olhar a evolução do mercado como um todo, que começou lá na década de 50 e veio se especializando cada vez mais com a chegada de uma gama maior de montadoras. Com maior oferta de modelos, o segmento premium, por exemplo, se desenvolveu. Ele é responsável por apenas 50 mil vendas de um universo total de 4 milhões de emplacamentos, mas está crescendo bem acima do mercado e ganhando participação. Até 2018 deverão ser 120 mil vendas anuais, e queremos pelo menos uns 30% dessa fatia. Quanto à concorrência, é um processo natural. Todo mundo gosta de um monopólio, né? (risos) Mas isso já não é mais possível no mundo de hoje. A própria concorrência vai nos tornar melhores.
Até que ponto o Inovar-Auto ajudou a trazer essas fábricas para cá? No nosso caso, a decisão da fábrica já estava tomada antes do Inovar-Auto. Além desse novo marco há fatores como o crescimento do mercado premium e a estabilidade institucional do país, isto sem falar na possibilidade de usar o Brasil como plataforma de exportação. Acho que a longo prazo os veículos feitos aqui podem abastecer não só os vizinhos mas todo o mercado ibero-americano. Juntando tudo, faz muito sentido vir para o Brasil.
Quando a fábrica entra em operação? Em outubro. Nós investimos ¤ 240 milhões nessa fábrica, que tem capacidade de produzir 32 mil carros por ano. Serão cinco modelos: Série 1, Série 3, X1, X3 e o Mini Countryman. Quando todos estiverem sendo fabricados, teremos 1,2 mil funcionários.
É coincidência o local escolhido para a fábrica ser a região com maior colonização alemã do Brasil? Ter um local culturalmente ligado à Alemanha é importante. Ajudou sim na escolha, mas levamos em conta também a estrutura portuária de Santa Catarina, que eu considero a melhor do Brasil. Cabe lembrar que é um estado com um dos melhores níveis de conhecimento acadêmico do país. Quase toda a mão de obra será contratada na região.
Como conseguir que os funcionários brasileiros tenham uma produtividade igual à das equipes alemãs? Temos um programa de treinamento superambicioso. Construímos em Araquari um simulador do que será a fábrica, de forma que todos os funcionários já estarão treinados quando ela abrir as portas, em outubro. É uma recriação perfeita da linha de montagem, onde os funcionários treinam para todos os processos com que terão de lidar na fábrica.
Apesar da nova fábrica, o preço dos modelos não deve recuar no Brasil. Por quê? A principal vantagem de produzir no Brasil é o IPI reduzido, mas nós já nos beneficiamos disso e praticamos essa redução. Hoje existem modelos BMW abaixo de R$ 100 mil, o que até pouco tempo atrás era algo impensável.
Muitas marcas importadas “tropicalizam” seus carros ao trazê-los para o Brasil, ou seja, tiram vários itens de tecnologia e os substituem por outros mais simples. O BMW feito no Brasil será igual ao europeu? Exatamente igual ao que sai de qualquer fábrica da BMW no mundo. Os equipamentos serão os mesmos. A única coisa diferente é o motor, que deverá ser flex na maior parte dos modelos.
Existe a possibilidade de termos um modelo BMW completamente made in Brazil, da concepção ao acabamento? Nós já temos um BMW brasileiro: é o 320i ActiveFlex, um dos primeiros turbo flex do mundo. Foi uma tecnologia conjunta desenvolvida entre Brasil e Alemanha especificamente para o mercado brasileiro. Olhando um pouco mais de longe, dá para ver que existe um foco da BMW em fazer produtos para o Brasil. As regras do Inovar-Auto exigem que eles tenham uma parte da tecnologia desenvolvida por aqui. Outra possibilidade é na área de blindagens, quase uma exigência no mercado brasileiro – cerca de 30% a 40% dos carros do mercado premium já usam esse equipamento. Podemos fazer, por exemplo, um projeto de blindagem aqui para ser usado no resto do mundo.
Alguns especialistas dizem que o carro é um produto decadente, em virtude dOs problemas crescentes de mobilidade urbana. Qual o futuro do automóvel? Essa é a pergunta do milhão de dólares. De um lado existe a preocupação com um mundo menos poluidor. De outro, o fato de que o automóvel faz parte da cultura global. Todo mundo fala “temos de mudar”, mas pergunte para qualquer pessoa se ela abriria mão de um automóvel. Poucas aceitariam. Pegue uma capital europeia com problemas de congestionamento. Normalmente são cidades com infraestrutura de transporte público muito boa, e mesmo assim continua a se vender muito carro por lá. O que muda é a forma de uso. Se você morar em Madri, vai ter o seu automóvel na garagem, mas talvez não o use para ir trabalhar. Isso envolve uma mudança cultural. As pessoas gostam muito do sentido de propriedade, então não é fácil passar para um modelo como o compartilhamento ou o leasing – que é o sistema mais inteligente do ponto de vista econômico. Nos EUA, 80% do mercado funciona por leasing, mas o Brasil ainda não está preparado para isso. Não temos infraestrutura fiscal nem taxas de juros adequadas.
Mas o que fazer enquanto o transporte coletivo não melhora por aqui? É um problema grave. Em São Paulo, o tráfego é um dos piores do mundo, algo mais sério até do que em Los Angeles, que talvez seja um dos piores dos EUA. Uma das possibilidades para mudar isso é o carro elétrico, que tem uma série de benefícios de uso além de reduzir a poluição. Em Los Angeles, os carros elétricos podem circular em faixas reservadas das avenidas desde que haja duas ou mais pessoas dentro do carro, o que ajuda a tirar veículos das ruas. Isso é importante para o futuro. A longo prazo, por aqui, o que pode modificar o uso do automóvel é realmente a melhoria no transporte coletivo.
É possível criar uma frota de carros elétricos num país que tem uma empresa como a Petrobras, focada em combustíveis fósseis? Tanto é possível que iremos comercializar nosso modelo elétrico BMW i3 já este ano. Ainda vai ser uma utilização muito urbana, porque a autonomia do carro elétrico ainda é limitada. As associações também estão discutindo com o governo uma possível isenção de IPI para o carro elétrico. O que falta por aqui é ser corajoso e tomar a decisão de fazer as coisas que precisam ser feitas. Claro, tem pontos que precisam ser aperfeiçoados, como a infraestrutura das estradas e dos postos de abastecimento para esse modelo. Mas isso vai sendo criado conforme a demanda.
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