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Alguns municípios brasileiros, como São Tiago, em Minas Gerais, experimentam as delícias (e, acredite, algumas dores) do "desemprego zero"
Já não se sabe ao certo como começou a história dos biscoitos que enriquecem e movimentam a cidadezinha de São Tiago, em Minas Gerais, a 200 quilômetros de Belo Horizonte. Muita gente diz lembrar de um certo Péricles, que passou por ali há duas décadas e empolgou as biscoiteiras com sua conversa. "Ele chegou com uma fome louca de comprar biscoitos para vender em São Paulo", diz Geraldo Sampaio, um ex-fabricante das guloseimas. O tal Péricles pode até ter convencido o povo a correr para os fornos e assadeiras, mas desde 1750 a região já era conhecida como Terra do café com biscoito, um ponto de descanso e comilança para tropeiros. Hoje, as receitas que vieram das bisavós fazem uma mistura perfeita com o tino comercial de pequenos empresários locais. Como resultado, São Tiago tornou-se raridade - uma cidade em que é quase impossível encontrar um desempregado. "Aqui só não trabalha quem não quer. Está todo mundo empregado. Não acho funcionário para contratar", diz Alexandre Machado, um fabricante de biscoitos.
Essa peculiaridade tem consequências curiosas. Por lá existe, por exemplo, brasileiro que largou a estabilidade do emprego público para se arriscar a gerar empregos. Vera Almeida foi servidora municipal concursada durante 17 anos. Ela havia começado um negocinho simples com biscoito, como quem não queria nada. "Era só para aumentar a renda. Mas foi crescendo, crescendo e eu tive de largar a prefeitura", diz. Hoje, Vera tem 25 funcionários, afirma faturar perto de R$ 100 mil mensais e está construindo uma fábrica. "Quero comprar mais um caminhão para meu genro e um de meus filhos trabalharem." O marido já vai a Belo Horizonte de caminhão duas vezes por semana.
Outra curiosidade? O homem que tem um tesouro inteirinho feito de biscoito. Ronaldo Lara abriu um varejão em 1989. Ia à Ceasa de Belo Horizonte e voltava com farinha e óleo para os biscoiteiros. Dos ingredientes, passou a fabricar embalagens de biscoito. Das embalagens passou à produção de ovos, dos ovos passou ao biscoito pronto. Ele produz e entrega no resto do Estado e em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Paraná com sua empresa, a Tesouro de Minas. É dono também do único hotel da cidade, de dois mercados e uma fazenda. Tem 52 funcionários.
Mais? Que tal a história do moço que trabalha para a sogra feliz da vida? Ele é funcionário de Rosilda Rezende, ex-enroladeira de biscoitos que hoje tem a própria fábrica e emprega também as duas filhas e duas irmãs. "Trabalhar com a família é meu maior prazer, mas não foi fácil. Cansei de deitar à meia-noite e levantar às 2 da manhã. Não gosto de gente preguiçosa", diz. O genro, Eduardo Parreiras, tem a receita para trabalhar com tantos parentes. "A gente dá muito certo. É só não conversar demais", diz, aos risos.
A riqueza dos biscoitos se multiplica quase tão rapidamente quanto as histórias. Há duas décadas, São Tiago contava três empresas que assinavam carteira de trabalho, um salão de beleza, um mercado e uma loja de eletrodomésticos. Hoje, com apenas 10.500 habitantes, o município dispõe de mais de 60 empresas que assinam a carteira, 20 salões de beleza, cinco mercados, quatro lojas de eletrodomésticos. As 45 fábricas de biscoitos empregam um em cada sete habitantes e assam 200 toneladas todo mês.
Segundo o cadastro de empregos do Ministério do Trabalho, enquanto o Estado de Minas - já bem aquecido - ampliou em 7% o número de postos de trabalho, em São Tiago o avanço foi de 12%. Não existem estatísticas consolidadas de trabalho para todas as cidades brasileiras, mas economistas e especialistas em microempresas apontam, pelo país, algumas poucas cidades que realizaram essa proeza. Elas foram além do estágio econômico de "pleno emprego" (já difícil de alcançar, em que as estatísticas ainda detectam alguns desempregados) e chegaram a um quase mítico estágio de "emprego total" - que traz, junto com os benefícios, alguns problemas específicos.
Faz parte desse grupo Terra Roxa, no Paraná, a capital brasileira da roupinha de neném. O setor emprega mais de um quinto dos 16 mil habitantes em 50 fábricas de roupinhas. É o caso também de Toritama, em Pernambuco, responsável por 16% da produção nacional de calças s jeans. Com menos de 40 mil habitantes, a cidade ostenta 2.500 confecções, a maioria doméstica, e atrai trabalhadores de até 150 quilômetros de distância. A 23 quilômetros de lá, Santa Cruz do Capibaribe, a capital da moda no Nordeste, também goza da fama de empregar todo mundo. Não existe costureira disponível em toda a região. As 12 mil confecções locais atraem até gente de outros Estados.
Nenhum desses polos de dinamismo nasceu por obra de planejamento governamental. "Trata-se normalmente de uma vocação local, criada por alguma história", diz Marise Xavier, gerente da unidade de indústria do Sebrae mineiro. "Pode surgir uma pessoa que cria uma empresa, se dá bem e puxa outras menores para o mesmo ramo." Essas localidades apresentam mais características em comum. Além de encontrar a vocação local, conseguiram dar, por algum motivo, um salto de profissionalização e qualidade e fazem o dinheiro circular por grande parte da população. "Em São Tiago, tem muita gente ganhando pouco, mas o negócio é que todo mundo ganha", diz Alexandre Machado, o grande inventor de biscoitos da cidade.
Da imaginação desse Willy Wonka mineiro saem fornadas de novidades - até o momento, 40 variedades de guloseimas, como novos tipos de biscoito de limão, maracujá e cajuzinho. Ele introduziu os de alho, cebola e pizza na produção local. No momento, refina a criação que chama de "tortatinha", biscoito de polvilho com batata. Essa inventividade não sairia da cozinha, conta ele, se não fossem dois choques no jeito de trabalhar da cidade. O primeiro ocorreu em 1995, quando a Vigilância Sanitária estadual começou a fiscalizar a produção local regularmente. Vários produtores saíram do ramo, abrindo caminho para os que se dispunham a trabalhar com padrões mais altos. Naquele momento, o número de fabricantes caiu, mas a produção triplicou, diz Flúvio Marins, chefe de gabinete da prefeitura. Em 2006, foi a vez de o Sebrae levar a São Tiago aulas de manipulação de alimentos, administração e contabilidade.
O efeito mais vistoso do poder dos biscoitos, até o momento, é a melhora da escola municipal, que em 2010 ficou em 9º lugar no Estado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Mas o "emprego total" traz seus problemas. O dinheiro nas mãos dos jovens resultou em maior consumo de drogas. A produção sem mecanização chegou ao limite - um novo salto de qualidade exigirá investimento considerável. Os moradores se preocupam com a chegada de forasteiros. Os empresários reclamam que a lucratividade vem caindo, o que pode ser resultado de simples concorrência, mas também da ampliação dos negócios sem planejamento adequado. Economias aquecidas repentinamente tendem mesmo a sofrer com essas mazelas. Evitá-las requer investimentos com prazo mais longo, em educação, segurança, transporte. Ninguém ainda inventou outra receita.
Por Leopoldo Mateus, de São Tiago